Querida América Latina,
Mesmo morando por toda minha vida em seu território, foi somente em 2011 durante o meu primeiro mochilão, que eu pude perceber um pouco melhor o que você é.
Confesso que me sinto envergonhado pelo que vou dizer, mas a verdade é que por vinte anos, praticamente ignorei a sua existência.
Isso mesmo.
Te ignorei por todo esse tempo mesmo sendo você, o que eu chamo de casa.
Não tenho certeza porque fiz isso.
Talvez falta de curiosidade. Talvez por se falar tão pouco de você nas escolas. Ou talvez pelo fato da maioria de nós, brasileiros, não nos sentirmos parte de você.
Sim, eu sei. Deve ser triste para você escutar isso.
Mas essa também é outra verdade que você deve aceitar.
Acredito que mais da metade dos brasileiros não se consideram ou se esquecem que também são latino-americanos.
Enfim…
Não cabe a mim questionar ou tentar encontrar justificativas para isso.
Pelo menos não agora.
A mim cabe te agradecer pelos momentos inesquecíveis que já vivi ao seu lado e por tudo o que você me oferece.
São tantas as alegrias que você já me trouxe, que por diversas vezes me iludo pensando no paraíso que você é.
Ok. EU te considero um paraíso.
Mas isso porque eu tenho a sorte de estar aqui, sentado confortavelmente atrás de um notebook te escrevendo essa carta.
Porém, a verdade é que você é muito contrastante.
Não, espera.
Acho que desigual é uma palavra que se ajusta melhor nesse contexto.
Isso.
A verdade é que você é muito desigual América Latina.
E essa desigualdade, minha cara, faz com que eu tenha uma verdadeira relação de amor e ódio com você.
E esse paraíso acaba desaparecendo da minha imaginação.
Sim. Eu te amo pelas grandes construções que o seu povo foi capaz de fazer.
Maias, Incas e Astecas ergueram verdadeiros impérios e cidades que até hoje servem para conhecermos um pouco mais do nosso passado.
Mas é impossível te amar com tantas pessoas desabrigadas pelas suas ruas.
Também te amo incondicionalmente pela sua gastronomia.
Feijoada, chivito, arepas, quesadillas, bandeja paisa, ceviche e empanadas…
A lista é imensa.
Um prato melhor que o outro.
Mas saber que 34 milhões de latinos não tem o que por na mesa, me faz perder a fome.
E quer saber do que mais, minha Latina América?
A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, educação e arte!
Guimarães Rosa, Gabriela Mistral, García Márquez, Neruda e Eduardo Galeano me fazem ter certeza de que alguns de nós sabem muito bem como escrever, e por isso eu te amo.
Mas te odeio pelos 36 milhões de adultos que não sabem ler e nem assinar o próprio nome.
Fernando Botero, Frida Kahlo, Candido Portinari e muitos outros provam que sim, nós também sabemos fazer arte.
Mas infelizmente falhamos na hora de transmiti-las e incentivá-las para as nossas crianças.
Te odeio pelos quase 13 milhões de niños e niñas que tem que trabalhar dia após dia ao invés de estarem na escola, aprendendo e vivenciando tudo isso.
E o que falar então do próprio latino americano?
Em sua grande maioria, hospitaleiro, amável e disposto a ajudar qualquer turista perdido na rua.
Sabia que esse é um dos principais elogios quando um gringo te visita?
E eu também te amo por sempre terem me tratado tão bem por onde eu passei.
Por cada gesto de gentileza e generosidade que já recebi de dezenas de desconhecidos.
Mas temos que admitir, América, ainda somos muito intolerantes (ou seria ignorantes?) com os nossos conterrâneos.
Tratamos muito bem quem vem de fora, mas não pensamos duas vezes em julgar e desrespeitar todos aqueles que são ou pensam diferente dos seus padrões criados há séculos atrás.
Todos aqueles que não se enquadram no seu “jeito certo” de religiosidade, orientação sexual, estilo de vida, ou seja ele qual for, ainda sofrem perseguições na maior parte do seu território.
Pois é…
Você ainda não entendeu muito bem que o mundo não é limitado como os seus padrões, que como já te disse, são de séculos passados.
Sobre as suas paisagens poderia ficar horas falando sobre cada uma delas.
O Caribe, a Patagônia e os Andes são as minhas favoritas.
A Amazônia, o Atacama e o Uyuni ainda não tive o prazer de visitar. Mas tenho certeza de que quando nos conhecermos, não me decepcionarão.
As Chapadas (todas), as Cataratas, Noronha, as praias do Rio e Nordeste, Alter de Chão e Jalapão.
São apenas algumas das paisagens tupiniquins das quais me orgulho de ter em suas terras.
Saiba que eu te amo por todas elas América Latina.
Mas não posso fingir que somente elas estão em você.
Em muitos dos seus países o cenário não anda nada bem.
As belas paisagens, infelizmente, já deram lugar a cenas de destruição, violência e desespero.
Difícil.
Muito complicado, hein, América Latina.
Porém, saiba que mesmo que com todos esses problemas, eu ainda te amo.
E também te odeio.
Mas não se preocupe, afinal, dizem por aí que o amor e ódio andam lado a lado, não é?
E mesmo te odiando algumas vezes eu não penso em abandoná-la.
Ainda tenho muito o que ver e viver com você.
Sim, é verdade que em alguns momentos estaremos separados.
Mas não pense que estou te traindo ou que não voltarei.
É que o mundo é muito grande, sabia?!
Quando me ausentar, é porque estarei conhecendo outros países, culturas e pessoas.
Para assim, tentar entender um pouco melhor de como funciona tudo isso.
E fique tranquila, pois quando eu voltar te contarei tudo o que aprendi por aí.
E continuaremos a nossa história.
E que ela possa seguir com muito mais motivos para amá-la do que para odiá-la.
Forte abraço (para cada canto dessa sua imensidão),
Murilo Pagani
Belo post, Murilo! De um jeito pessoal você conseguiu mostrar essa América Latina de tantos contrastes, onde de um lado estamos num paraíso e em poucos momentos vemos tanta coisa ruim. É mesma essa sensação de amor e não diria ódio, mas de impotência e tristeza. Acho que todos temos que trabalhar para tentar melhorar essa realidade. 🙂
Realmente acho que impotência é a palavra mais adequada Mariana!
Sem dúvida alguma! Se cada um fizer um pouquinho já é melhor que nada!
Abraço
Murilo gostei muito de ler este texto tão pessoal, uma carta ao continente que te viu nascer e crescer. Sem duvida que a America Latina tem muitos contrastes, a disparidade entre riqueza e pobreza é abismal! Nós podemos fazer um pouco mas mudar isso inteiramente é um trabalho arduo que conta com o apoio de toda a comunidade. Só posso dizer que a natureza por aí é das mais belas que já observei, chorei diversas vezes ao ver quão bonito é o nosso planeta, as cascatas enormes, as civilizações passadas e como falaste tão bem na gastronomia. Não podemos claro descurar de quem mais precisa, e se cada um fizer um pouquinho ja ajuda bastante. Pessoalmente não dou dinheiro a ninguém, a não ser que seja alguém bem idoso. Ao inves disso pago uma refeição, ofereço comida.
Oi Marta!
Concordo com você…
O que mais me incomoda é que ainda por cima desperdiçamos toneladas e mais toneladas de alimentos.
Também tenho esse hábito de pagar uma refeição quando vejo alguém que precisa! 🙂
Abraço
Como não amar tanta beleza na América Latina e como não odiar todos esses problemas ????conhecer culturas e o lado desigual de um país ou cidade eh essencial para o conhecermos por completo e ainda trabalhar em prol essa mudança. Além de viajarmos temos de ser a mudança que queremos no mundo! Eu aqui em Braga trabalho para evitar que o número de pessoas que passam fome diminua. E vc? O que faz para que esses problemas na América Latina diminua?
Oi Naiara!
Exatamente. Normalmente quando não “saímos do nosso mundinho” não conseguimos enxergar as coisas boas e as ruins que existem nesse mundo.
Muitas vezes inclusive estão mais próximas do que imaginamos.
Olha, confesso que a minha empatia em especial são com os moradores de rua.
Além de sempre ajudar com alimentos e refeições à quem precisa, algo que acontece com bastante frequência em São Paulo é eles te abordarem simplesmente para conversar. Ou puxarem assunto caso você esteja próximo. Muitas vezes para desabafar mesmo.
Sempre dedico alguns minutinhos de prosa com quem está afim…
Abraço,
Murilo seu post é de arrepiar! Partilho de muitos dos seus comentários e sentimentos por nosso continente, especialmente em nosso Brasil! Em São Paulo são tantas atrações que ficam esquecidas e ignoradas em virtude da criminalidade que chega a ser ridículo. Achei um excelente texto, parabéns e obrigada por conseguir colocar no papel o que pensam milhares de pessoas. Beijão
Que bom que gostou Luciana!!
🙂 🙂 🙂
Eu já li esse texto várias vezes – e não tinha comentado (shame on me). Acho lindo e de uma profundidade que toca a gente.
Estamos em um continente cheio de detalhes e diferenças e isso faz com que sejamos únicos na nossa loucura e beleza.
Compartilho do mesmo amor pela beleza das nossas terras 🙂
Não é!?
Tanta coisa pra gente conhecer e viver… (boas e ruins)
Que bom que gostou! 😉
Abraço
Oi Murilo. Gostei muito do seu post e como optou por falar do seu amor (ou, por vezes, desamor) pela América Latina. É sem dúvida uma forma diferente de apresentar a região e ao mesmo tempo colocar o seu cunho pessoal. Acho que só ficou a faltar um P.S. … 😉
Legal que gostou Marlene!
Faltouuuuu mesmo… Nem tinha me tocado disso… hehehe
Abraço
Adorei a “carta” post excelente e com fotografias lindas, é mesmo assim muitas vezes vamos deixando para conhecer depois os destinos que estão mais perto de nós, eu sou portuguesa e ainda há vários países da Europa que não visitei e já estive na América latina e em África, é aquela sensação de ” está mesmo aqui é a qualquer momento visito”. Bjs
Obrigado Sonia!
🙂
Sou muito de escrever de um modo diferente e fico maravilhada quando encontro textos com seu mega toque pessoal, mesmo quando densos, como esse. Um retrato fiel, afinal, não poderia trazer só as belezas, pois todos – homens, países e continentes – somos de alguma forma assim, um conjunto do que apreciar e nossas mazelas, misturados. Desejo que nesse liquidificar a cada vez as belezas se sobressaiam às mazelas, com igualdade e o mínimo de fartura para que todos possam apreciar o que temos de mais lindo. Abraços.
Oi Paula!!
Concordo com absolutamente tudo que você disse.
Também acho que sempre há dois lados da moeda.
Abraço,
Nossa, que diferente!!!Amei.. Muito bacana esse seu olhar. parabéns….. amei o post.
Valeuuu Daniela!
😉
Murilo, adorei o novo estilo de escrita. Também me sinto assim às vezes. O Rio de Janeiro, cidade onde vivo há anos entre idas e vindas de viagens, me dá exatamente esse sentimento que você descreveu. Às vezes olho pra essas praias, montanhas, cachoeiras, construções históricas, os moradores super simpáticos. Me sinto vivendo num paraíso.
Mas também me sinto impotente, quando tenho medo de atender meu celular na rua, quando tento ir ao banco e uma pessoa está pedindo dinheiro na porta, quando uma criança me aborda pra vender bala, quando levo três horas e meia no ônibus para chegar ao trabalho, quando chove e todas as ruas alagam, quando passo rápido numa rua escura morrendo de medo, quando vejo o contraste que é essa cidade, nosso país e nosso continente.
Uma relação de amor e impotência diante de tanta desigualdade. Tomara que um dia tudo isso mude!
Faaala Carla!!
Uhuuull… Muito bom saber que gostou do post! 🙂
Pois é… Uma lamentável (pra dizer o mínimo) realidade!
E acho que o Rio de Janeiro é um dos lugares onde isso é mais gritante! =/
Já pensou como seria incrível se daqui alguns anos pudéssemos ler esse post e dizer: ” Olha só como as coisas mudaram em tão pouco tempo!!”
Abraço
Murilo